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Luta antimanicomial e saúde mental - Etelma T. de Souza

A luta antimanicomial é um movimento dos profissionais de saúde para um tratamento humanizado aos usuários dos serviços de saúde mental e seus direitos.

De acordo com o Movimento Antimanicomial, pessoas com transtornos mentais, têm o direito fundamental à liberdade, a viver em sociedade, a receber cuidado e tratamento, sem que para isto tenham que abrir mão de seu lugar de cidadãos.

Dentre as pautas do Movimento Antimanicomial, no início das lutas, estavam o fim de tratamentos degradantes, como a eletroconvulsoterapia – ECT, mais conhecido como eletrochoque; melhores condições de assistência e humanização dos serviços.

Além dessas bandeiras de luta, como o próprio nome diz, o movimento também era favorável ao fim dos manicômios, sendo esse o principal objetivo.

Ao invés de unidades manicomiais, assistência não institucionalizada, a fim de promover o bem-estar e dignidade dos indivíduos acometidos por transtornos mentais e de suas famílias, envolvendo atividades que em muito ultrapassavam as do campo convencional da saúde.

Para isso, o Movimento propôs a oferta de serviços de saúde mental abertos.

Nessa luta por uma sociedade sem manicômios, diferentes categorias profissionais, associações de usuários e familiares, instituições acadêmicas, representações políticas e outros segmentos da sociedade, questionaram o modelo clássico de internações em hospitais psiquiátricos, denunciaram as graves violações aos direitos das pessoas com transtornos mentais e propuseram a reorganização do modelo de atenção em saúde mental no Brasil a partir de serviços abertos, comunitários e territorializados, buscando a garantia da cidadania de usuários e familiares, historicamente discriminados e excluídos da sociedade.

 O Movimento da Reforma Psiquiátrica obteve êxito e conseguiu aprovação da Lei nº 10.216/2.001, que trata da proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo de assistência.

 Com isso, ficou estabelecida a responsabilidade do Estado no desenvolvimento da política de saúde mental no Brasil, através do fechamento de hospitais psiquiátricos, abertura de novos serviços comunitários e participação social no acompanhamento de sua implementação.

 Muito se avançou na área de saúde mental. Porém, e a sociedade, mudou na forma de ver e lidar com pessoas acometidas por transtornos mentais?

 Escolhi abordar o tema a partir da letra de uma música: “Triste, louca ou má”, de Juliana Strassacapa, da banda Francisco El Hombre.

 O título da música já diz muito. Ou seja, mulheres que fogem a regras impostas por uma sociedade machista e excludente, devem ser tristes, loucas ou más.

 Logo no início, a autora aborda:

 “Triste, louca ou má

 Será qualificada

 Ela quem recusar

 Seguir receita tal

 A receita cultural

 Do marido, da família

 Cuida, cuida da rotina”

 A loucura, não raras vezes, é colocada exatamente nesse ponto de confrontamento. O louco é representado como aquele que não se encaixa em padrões sociais. Segundo Artaud, são os desviados da sociedade.

 Foucault, em sua obra “A história da Loucura”, aborda a loucura sob a ótica de estruturas de poder, na regulação do que é ou não normalidade por instituições disciplinares. O que, para outros autores, também é uma questão de controle social.

 O autor também coloca a doença mental como personagem principal revelando sua verdade, cujas circunstâncias atenuantes e agravantes expõem situações acima dos cânones e paradigmas institucionalizados pela “normalidade”.

 Assim, a verdade revela que “o louco pode ser menos louco e que a sanidade não está necessariamente contida na teoria que se pretende verdade ao tratar dos apocalípticos desertores do cotidiano”.

 Voltando a outros versos da música de Strassacapa:

 “Só mesmo, rejeita

 Bem conhecida receita

 Quem não sem dores

 Aceita que tudo deve mudar”

 Aqui, podemos voltar aos desviantes descritos por Artaud e, também a Foucault em sua consideração de que o louco pode ser menos louco. Ou, até mesmo questionar quem é “o louco”.

Os versos apontam que a mulher que rejeita a receita de seguir convenções sociais, não passa por isso sem dores. Mas, sobretudo, tem a consciência de que tudo deve mudar.

 Mais adiante, Strassacapa diz:

 “Que um homem não te define

 Sua casa não te define

 Sua carne não te define

 Você é seu próprio lar”

 Mulheres que se recusam a serem definidas por homens, por sua própria carne, também são consideradas desviadas da sociedade e se encaixam no perfil acima descrito.

 Assim como, também, por vezes, tornam-nas bodes expiatórios.

 Lembremos aqui que, bodes expiatórios, muitas vezes são as pessoas saudáveis na família, sobre quem os demais membros descarregam seus próprios conflitos e angústias.

 A seguir, outro trecho de “Triste, louca ou má”.

 “Ela desatinou

 Desatou nós

 Vai viver só”

 Ela desatinou... Será esse o destino de mulheres que ousam ir contra convenções sociais, misoginia e machismo estrutural?

 Eis os destinos traçados pela sociedade para essas mulheres que lutam por si mesmas e por outras: o desatino, a loucura, viver só...

 Eis o destino traçado para mulheres que lutam por direitos e que são independentes, que se recusam a serem apêndices de homens, a serem “a costela de Adão”.

 Porém, também temos aí o desatar de nós.

 É necessário que desatemos esses nós sociais e nos coloquemos na sociedade como o que somos de fato: Mulheres, cidadãs de direitos, que lutamos por igualdade e, sobretudo, DONAS DE NOSSOS PRÓPRIOS CORPOS”

 Strassacapa vai além:

 “Eu não me vejo na palavra

 Fêmea, alvo de caça

 Conformada vítima

 Prefiro queimar o mapa

 Traçar de novo a estrada

 Ver cores nas cinzas

 E a vida reinventar”

 Pensando no hoje, em nossa sociedade atual, como são tratadas as mulheres que se recusam a serem apenas fêmeas, alvos de caça e conformadas?

 Aqui temos o auge da luta por libertar-se das imposições sociais e a libertação de fato por sua própria escolha: queimar o mapa, traçar de novo a estrada e a vida reinventar.

 Muitas mulheres acometidas por transtornos mentais, precisam ter suas vidas reinventadas. A reinvenção, inclusive, pode prevenir o transtorno mental. Porém, precisam ser fortalecidas para que possam suplantar suas condições, seja no aspecto de doença mental, seja nos gerais de sua vida.

 Mulheres fortes, estão mais aptas a queimar o mapa, traçar de novo a estrada e a vida reinventar.

 Isso se aplica também a mulheres vítimas de violências diversas.

 É necessário atuarmos em rede intersetorial para atendimento preventivo e, quando for o caso, remediativo.

 Nessa reinvenção, surgem os versos:

 “E um homem não me define

 Minha casa não me define

 Minha carne não me define

 Eu sou meu próprio lar”.

 Relembrando Simone de Beauvoir: “Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre”.

 Enfim, nem tristes, nem loucas, nem más! Apenas mulheres em sua plenitude que se recusam a serem definidas por homens!

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