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Observações ao protocolo de volta às aulas da cidade de São Paulo - Etelma T. de Souza



Acabo de ler o documento "protocolo de volta às aulas", elaborado pela Secretaria Municipal de Educação, para o retorno das aulas presenciais nas escolas municipais de São Paulo.

Caso esteja disponível na internet, compartilharei em minhas redes sociais. Enquanto isso, divulgarei lives que debatem o tema e em que professores se posicionam sobre a reabertura. É bom ouvi-los, pois nos trazem a visão de quem está diretamente envolvido na situação que se apresenta.

O protocolo a meu ver, e na de professores com quem conversei, e outros que têm opinado nesses lives, é impraticável. Observo, inclusive, que o documento causa efeito contrário ao pretendido.

Professores estão se sentindo ainda mais inseguros com a determinação de retorno das aulas presenciais em 08 de setembro e o protocolo parece ter piorado essa sensação de que todos correrão riscos ao voltar às salas de aula.

Inclusive, alguns me relataram que, tão logo souberam da decisão e tiveram acesso ao protocolo, professores estão adoecendo. Há relatos de crises de pânico e ataques de ansiedade. Sem contar outros sintomas e doenças pelos quais já vinham sendo acometidos desde que tomaram contato com as exigências para executar até a prática das aulas remotas. Isso porque, faltam estrutura, equipamentos, treinamento e se depararam com dificuldades diversas, tanto deles, como de estudantes e famílias.

Em minha opinião, além de uma série de exigências que sobrecarregarão funcionários e professores (não gosto dessa expressão separatista, afinal, professores também são funcionários), as medidas previstas não me parecem suficientes para conter a propagação do coronavírus e, muito menos, para que todos os envolvidos se sintam seguros.

Além do fato de que, para mim, muitas ações são inexequíveis, considerando não apenas seu conteúdo, mas, também, a ausência de profissionais para executá-las.

Como se não bastasse, também penso que muito do que está previsto no documento será impraticável porque requerem tempo longo de dedicação e mais funcionários para execução; porque são necessários muitos materiais, que não acredito que a Prefeitura forneça; porque envolve uma rotina bem diferente da que todos os envolvidos estão habituados e com muitos cuidados voltados para a saúde; enfim, por motivos diversos.

É prevista formação em saúde para gestores, professores e demais funcionários, incluindo as normas de prevenção à contaminação e uso de equipamentos de proteção e procedimentos necessários para tentarem evitar a propagação do coronavírus no ambiente escolar.

Ou seja, pretendem que eles se tornem “especialistas” em área que não é a deles, que dominem ações da saúde para que possam atuar como uma espécie de “agentes de saúde”.

Por exemplo, os funcionários das escolas, dentre outras atividades, deverão monitorar o aparecimento de sintomas nos estudantes.

O protocolo também traz orientações para os próprios estudantes e mães, pais e responsáveis, dentre os quais, medir a febre antes de sair de casa.

Oras, há famílias numerosas e em situação de extrema pobreza que sequer conseguem máscaras para todos seus membros. Agora, também terão que comprar termômetro? Terão que incluir em sua rotina outras preocupações com procedimentos porque o governo se precipita em autorizar a reabertura das escolas?

Para estudantes, o protocolo prevê uma série de responsabilidades e procedimentos, ou seja, serão exigidos a se ocuparem com várias ações e comportamentos para protegerem a si mesmos e ao demais.

Quantos compreenderão e conseguirão cumprir com todas as cobranças?

O documento prevê organização dos espaços, limitação à circulação de todos, ventilação, limpeza e muitos outros cuidados e regras.

Há orientações para proibirem o uso de materiais e brinquedos coletivos, o que vai limitar ainda mais as possibilidades e atividades dos estudantes nas escolas.

Porém, quando esses materiais ou brinquedos forem da Educação Infantil, embora orientação seja a mesma, também é previsto que isso pode não ser possível, então, os professores devem fazer a desinfecção sempre que um brinquedo passar de uma criança a outra. (Nesse momento penso nos bebês observando e “aguardando paciente e passivamente” que a professora faça a desinfecção, com toda a tranquilidade e compreensão características de bebês e crianças de 0 a 3 anos...).

Ainda na Educação Infantil, sugiro que reflitam sobre várias coisas: nos CEIs – Centro de Educação infantil (antigas creches), as crianças têm o horário de dormir; estão habituadas a brincar no parquinho; estão acostumadas a se tocarem, a compartilharem brinquedos, e etc.

Aliás, há orientações sobre procedimentos para professores a cada vez que tocarem uma criança.

Mas, e quanto às crianças? Serão proibidas de se tocarem?

Caso se toquem, quais serão os procedimentos? Álcool em gel a cada toque?

O uso de máscaras, de acordo com o protocolo, é obrigatório apenas para estudantes a partir do 1º ano do Ensino Fundamental.

Apesar de crianças serem menos infectadas, uma das variáveis é o fato de estarem em casa. Como será quando forem às escolas e sem máscaras?

Pensemos também na entrada, saída e no horário de intervalo das escolas com crianças e adolescentes do Ensino Fundamental e Médio.

É prevista a medição de febre por termômetro sem contato físico na entrada das escolas. Já pensaram quanto tempo isso levará e quantos profissionais serão necessários?

Como conterão todos os estudantes para que mantenham o distanciamento social seguro?

No refeitório, lembremos que pratos, talheres e copos são de uso coletivo.

No protocolo de alimentação, consta que os estudantes devem ser incentivados ao consumo da alimentação escolar e alimentos e embalagens trazidos pelos estudantes devem ter a entrada restringida de forma rigorosa.

Lembremos que bebedouros de escolas são coletivos. É prevista a utilização de copos ou canecas individuais para o consumo de água. Todos têm? Todos levarão?

Temos mais algumas “pérolas” no documento, como a orientação para limitar o tempo de recreação de acordo com o número de funcionários; substituição de recreação por momentos de lazer dentro da sala de aula[1]; limitar práticas esportivas; refeições podem ser servidas em salas de aula.

Com todas essas regras, procedimentos e exigências, realmente, a escola vai ficar “muito atrativa” para os estudantes, não acham?

Há também orientação aos funcionários para o caso de se depararem com estudantes com sintomas, os quais deverão ser isolados imediatamente e os familiares ou responsáveis legais devem ser chamados para buscarem seus filhos. Mais uma vez, profissionais deverão atuar como se fossem agentes de saúde.

Uma das (pseudo) justificativas para o retorno às aulas é o fato de pais, mães ou responsáveis estarem voltando a trabalhar e seus filhos não terem com quem ficar.

Considerando isso, penso em duas coisas: 1. Eles ficarão absolutamente tranquilos com seus filhos na escola, ainda mais sabendo dessas regras, muitas das quais não serão cumpridas porque são inviáveis?; 2. ficarão tranquilos sabendo que, a qualquer momento, poderão ser chamados para irem buscar seus filhos na escola por apresentarem sintomas de infecção?

Precisamos refletir sobre outra situação:  o trajeto desses estudantes até as escolas. Muitos vão a pé; outros de transporte público e outros, ainda, de transporte escolar.

O protocolo de volta às aulas prevê algumas medidas também para motoristas de transporte escolar, mas, serão exequíveis?

O protocolo prevê mais uma responsabilidade para as mães, pais ou responsáveis no item “ação com familiares”: aproximação dos familiares via aplicativo e outros meios digitais[2] para apresentação das propostas de retorno e compartilhamento do “novo formato de aulas”.

Uma das dificuldades encontradas pelos estudantes e familiares com as aulas remotas é exatamente com relação ao acesso à internet – seja porque em muitas regiões o sinal é ruim, seja por limitações com pacote de dados, limitações ou mesmo falta de Wi-Fi ou até mesmo por falta de acesso à internet por qualquer modo

Além do problema com acesso à internet, estudantes e famílias também se deparam com a falta de equipamentos, como computadores e celulares. Ou, ainda, com memória insuficiente quando têm os aparelhos, com incompatibilidade com os programas, dificuldades com os aplicativos.

Embora já esteja ciente dos diversos problemas e dificuldades que estudantes e suas famílias enfrentam para acessar as aulas online e realizar as atividades propostas pelos professores, o governo municipal ainda coloca em documento a previsão de “aproximação com as famílias via aplicativo e outros meios digitais”.

Como tenho dito há semanas, não se tratam apenas de problemas e dificuldades, mas de violações dos direitos fundamentais da criança e do adolescente.

Além de violações do direito à educação, o retorno às aulas presenciais, nos moldes pretendidos e com uma série de ações inexequíveis, coloca sob ameaça o direito à vida e saúde, ou até mesmo, violará de fato desse direito.

É nessa perspectiva de violações dos direitos fundamentais da criança e do adolescente que todos os envolvidos (mães, pais, responsáveis, funcionários das escolas, estudantes, sindicatos) precisam avaliar a determinação de reabrir as escolas.

Para finalizar, lembro que, de acordo com o ECA – Estatuto da Criança e do adolescente, lei federal 8.069 de 13 de julho de 1990, violações aos direitos fundamentais da criança e do adolescente configuram infrações administrativas ou crimes sujeitos a penas.



[1] Negrito meu.

[2] Idem.

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