Hoje, 13 de julho
de 2020, completamos 30 anos de promulgação do ECA – Estatuto da Criança e do
Adolescente, lei federal nº 8.069, que trouxe diversos avanços e inovações para
todas as crianças e adolescentes brasileiros.
O ECA é uma lei
protetiva e responsabilizadora, baseada na doutrina da proteção integral que,
por sua vez, é expressa em tratados internacionais dos quais o Brasil é
signatário.
São princípios da proteção
integral a definição de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos
fundamentais, estão em condição peculiar de desenvolvimento e são prioridade absoluta.
No aspecto da responsabilidade
pela efetivação dos direitos fundamentais, o ECA define em seu artigo 4º que:
É dever da família,
da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
(BRASIL, 1990)
O princípio da prioridade
absoluta significa que crianças e adolescentes têm
a) primazia de receber proteção e
socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos
serviços públicos ou de relevância pública;
c) referência na formulação e na
execução das políticas sociais públicas e
d) destinação privilegiada de
recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à
juventude. (BRASIL, 1990, art. 4º, Parágrafo único.
Essas são algumas inovações
e avanços trazidos por essa lei que se contrapôs à legislação anterior, o
famigerado Código de Menores, que expressava a doutrina da situação irregular.
Para o atendimento
aos direitos fundamentais, são necessárias políticas públicas e o Estatuto define
as linhas de ação e diretrizes dessas políticas.
São linhas de ação
(artigo 87 do ECA): políticas sociais básicas; políticas, serviços, programas, projetos
e benefícios da assistência social; serviços especiais de prevenção e atendimento
médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração,
abuso, crueldade e opressão; serviço de identificação e localização de pais,
responsável, crianças e adolescentes desaparecidos; proteção jurídico-social; políticas
e programas destinados a prevenir ou abreviar o período de afastamento do
convívio familiar; campanhas de estímulo ao acolhimento sob forma de guarda de
crianças e adolescentes afastados do convívio familiar e à adoção,
especificamente inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com
necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos.
Ou seja, as
políticas de atendimento a crianças e adolescentes devem ser definidas e
implementadas de acordo com essas linhas de ação e, também, com as diretrizes
estabelecidas no artigo 88.
Uma das diretrizes
estabelecidas é a criação dos Conselhos dos Direitos nos 3 âmbitos da Federação:
municipal, estadual e nacional.
Esses Conselhos são
órgãos paritários, compostos por sociedade civil organizada e membros dos
governos, encarregados de deliberar sobre políticas públicas e controlar as
ações em todos níveis.
Em cada esfera da
Federação, os Conselhos mantêm Fundos da Criança e do Adolescente para
financiar projetos de atendimento conforme plano de aplicação elaborado em cada
Conselho e de acordo com a prioridades definidas.
Outras diretrizes da
política de atendimento, estabelecidas no artigo 88 do ECA, são: municipalização
do atendimento; criação e manutenção de programas específicos; integração
operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança
Pública e Assistência Social para agilização do atendimento inicial a
adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional; integração operacional
de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Conselho Tutelar e
encarregados da execução das políticas sociais básicas e de assistência social,
para agilização do atendimento de
crianças e adolescentes em programas de acolhimento familiar ou institucional; mobilização
da opinião pública para a participação dos diversos segmentos da sociedade; especialização
e formação continuada dos profissionais que trabalham nas áreas de atenção à
primeira infância; formação profissional com abrangência dos direitos da
criança e do adolescente que favoreça a intersetorialidade no atendimento da
criança e do adolescente e seu desenvolvimento integral; realização e
divulgação de pesquisas sobre desenvolvimento infantil e prevenção da
violência.
Outra inovação
trazida pelo ECA foi a criação dos Conselhos Tutelares em todos os municípios
brasileiros. São órgãos encarregados pela sociedade de “zelar pelos direitos da
criança e do adolescente” (ECA, art. 131).
Dentre as atribuições do
Conselho Tutelar estão: atender crianças e adolescentes e aplicar medidas de
proteção; atender e aconselhar pais ou responsável e aplicar medidas previstas
no ECA; promover a execução de suas decisões através de requisição de serviços
públicos em diversas áreas; representar junto à autoridade judiciária nos casos
de descumprimento injustificado de suas deliberações.
O Conselho Tutelar também tem
como atribuição: representar junto à autoridade judiciária nos casos de
descumprimento injustificado de suas deliberações; encaminhar ao Ministério Público notícia de
fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da
criança ou adolescente; encaminhar à autoridade judiciária casos de sua
competência; assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta
orçamentária para planos e programas de atendimento à criança e ao adolescente;
representar, em nome da pessoa e da família, contra a violação dos direitos
relacionados a programas ou programações de rádio e televisão e de propaganda
de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio
ambiente; representar ao Ministério Público para efeito das ações de perda ou
suspensão do poder familiar.
É necessário entender que o
Conselho Tutelar é um órgão que atua na garantia dos direitos da criança e do
adolescente e é parte integrante do Sistema de Garantia dos Direitos, cuja
atuação é pautada pelos eixos da promoção, controle e defesa dos direitos.
Em relação à prevenção, no artigo
70, o ECA estabelece que “é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou
violação dos direitos da criança e do adolescente”. Ou seja, é dever do Estado,
da família e da sociedade.
Pensando na área governamental,
para efetivar essa prevenção, os governos, nas 3 esferas de poder, deverão
atuar na elaboração de políticas públicas e execução de ações para coibir o uso
de castigo físico ou tratamento cruel ou degradante.
Além disso, também devem disseminar
formas não violentas de educação de crianças e de adolescentes através de
campanhas educativas, formação continuada e capacitação a profissionais que
trabalham com crianças e adolescentes, dentre outras ações.
O ECA também traz inovações em
relação à prática de ato infracional, elencando medidas socioeducativas em meio
aberto e fechado, algumas já previstas no Código de Menores de 1979. Mas, no Estatuto
da Criança e do Adolescente essas medidas têm enfoque no caráter socioeducativo
em detrimento do coercitivo e punitivo da legislação anterior.
Além das medidas aplicáveis a
adolescentes autores de ato infracional, direitos individuais e garantias
processuais desses adolescentes estão estabelecidos no ECA, a fim de que todo o
processo transcorra de acordo com princípios da legalidade e proteção integral.
Adolescentes autores de ato
infracional devem ter seus direitos fundamentais preservados e garantidos, como
qualquer criança e adolescente. A diferença é que, em virtude de terem cometido
um ato que demande a aplicação de medida socioeducativa por juiz, ele pode ter
suspenso, por exemplo, o direito à liberdade, caso receba a medida de
internação. Porém, continuará gozando dos demais direitos: vida, saúde,
educação, esporte, ..., enfim, dos direitos elencados no artigo 4º do ECA e
reproduzidos no início desse texto.
Na lei 8.069, encontramos
medidas aplicáveis a pais e responsáveis, parte das quais pelo Conselho Tutelar
e outra pelo Poder Judiciário.
Algumas dessas medidas são encaminhamentos
a: serviços e programas de proteção, apoio e promoção da família; programa de
auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; tratamento
psicológico ou psiquiátrico; cursos ou programas de orientação.
Além dessas, pais e
responsáveis estão sujeitos a medidas de obrigação de: matricular o filho e
acompanhar sua frequência e aproveitamento escolar; encaminhar a criança ou
adolescente a tratamento especializado.
As medidas acima são aplicadas
pelo Conselho Tutelar que pode, ainda, aplicar a medida de advertência a pais e
responsáveis.
À autoridade judiciária compete
aplicar as medidas de perda da guarda; destituição da tutela e suspensão ou
destituição do poder familiar.
Assim, ao contrário do que
muitos pensam, a proteção integral preconizada pelo ECA não implica em
desobrigações da família para com seus filhos. Ao contrário, estabelece
exatamente quais são as obrigações dos pais e responsáveis e medidas a que
estarão sujeitos em caso de descumprimento de suas funções paternas, sejam
estas famílias naturais, adotivas, substitutas, guardiãs ou qualquer outro tipo
de família.
Com relação ao acesso à
Justiça, foi estabelecido que toda criança e adolescente terá acesso garantido à
Defensoria Pública, Ministério Público e Poder Judiciário, sendo que têm
direito à assistência judiciária gratuita quem dela necessitar, por meio de
defensor público ou advogado nomeado.
No âmbito da Justiça da
Infância e da Juventude, foi prevista a competência dos Estados para a criação
de varas especializadas e exclusivas da infância e da juventude, sendo o Poder
Judiciário responsável por estabelecer a proporcionalidade por número de
habitantes, dotá-las de infraestrutura e dispor sobre o atendimento, inclusive
em plantões.
Para que esses avanços e
inovações preconizados pelo ECA sejam efetivados, é necessário o reordenamento institucional,
já que o jurídico foi concretizado (ao menos em termos de legislação promulgada).
Promover o reordenamento
institucional implica em adequação das políticas públicas destinadas às
crianças e adolescentes ao ordenamento jurídico, ou seja, ao Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Hoje, 30 anos após a
promulgação do ECA, o reordenamento institucional ainda representa um desafio
nas esferas governamental e não governamental, em diversos espaços e
instituições.
Isso ocorre, inclusive, no aspecto
legislativo. Temos legislações estaduais e municipais que definem a política de
atendimento com preceitos em desacordo com o ECA.
Aliás, recentemente, até mesmo
no âmbito federal temos “inovações”, que estão em desacordo com o Estatuto,
ferem princípios da proteção integral e colocam em risco ou até mesmo violam
direitos fundamentais da criança e do adolescente (ver artigo no blog: O
Ministério da Educação e violações do direito fundamental à educação e outros
direitos).
Infelizmente, vemos o desmonte
da política de atendimento a crianças e adolescentes, seja através de
excrecências jurídicas, seja através de decisões e ações que são tomadas e
definidas contrariamente ao ECA e mais de acordo com o revogado Código de Menores.
Nas políticas de atendimento a
crianças, adolescentes e suas famílias, diversas instituições, tanto
governamentais quanto não governamentais, funcionam com práticas caritativas,
assistencialistas e, pior, coercitivas, punitivas. Ou seja, funcionam de acordo
com a lógica da doutrina da situação irregular, que se contrapõe à proteção
integral, expressa na legislação vigente.
Além dessas práticas que fazem
parte do cotidiano em diversas instituições há tempos, vivemos um período de
muitos retrocessos com o avanço de uma onda de conservadorismo que vem assolando
nosso país em diversos setores, inclusive no político e nas políticas de atendimento.
No Legislativo, importantes Projetos
de Lei deixam de ser discutidos e levados adiante; são criadas leis que ferem o
Estatuto da Criança e do Adolescente.
No Executivo, é nomeado para a
Educação um ministro que defende o castigo físico como forma de “educar”,
utiliza a expressão “vara da disciplina” e, vai além, e diz que bom resultado “não
vai ser obtido por meios justos e métodos suaves".
Essas falas do ministro configuram
violação de direitos e só por isso sequer deveria ser cogitado para assumir um
cargo que tem como uma de suas responsabilidades definir os rumos da Educação
no país. Aliás, para cargo algum que envolva criança, adolescente e família.
O que proporá? Que professores
empreguem castigo físico?
Pensando no deficitário
reordenamento institucional, e mais o conservadorismo que tanto retrocesso nos
traz, podemos considerar que o enfrentamento político e institucional é um dos
maiores desafios para a garantia de implementação das políticas de atendimento
de acordo com os princípios, linhas de ação e diretrizes preconizados no ECA.
Precisamos nos unir mais e
lutar para que nossas crianças e adolescentes possam se desenvolver em sua
plenitude em ambientes saudáveis e com todos seus direitos preservados e
garantidos.
Para tanto, penso que temos outro
desafio para tornar possível transformar essa realidade: que a sociedade brasileira
aceite o Estatuto da criança e do Adolescente.
Para isso, é necessário vencer
resistências e nós, operadores do direito da infância e adolescência,
precisamos intensificar nosso trabalho de informar, debater, capacitar os diversos
atores sociais que trabalham na área, além de mães, pais, responsáveis e as
próprias crianças e adolescentes.
Precisamos resgatar e fortalecer
o movimento pela infância e adolescência, com uma atuação mais sólida e
integrada.
Precisamos, sobretudo,
desmistificar o ECA, combatendo as distorções acerca dessa lei que são
disseminadas pela mídia, por políticos, por diversos setores de nossa
sociedade, por pessoas que sequer abrem o Estatuto para verificar se o que
ouvem corresponde ou não ao que apregoa a lei federal 8.069.
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