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O Ministério da Educação e violações do direito fundamental à educação e outros direitos - Etelma T. de Souza


Você sabe para que serve o Ministério da Educação - MEC?

 Vamos resgatar a origem do órgão (de acordo com portal do MEC).

 

-        1930 – Criação do Ministério da Educação e Saúde Pública.

-        1953 – Com a autonomia dada à área da saúde, surge o Ministério da Educação e Cultura, com a sigla MEC.

-        1985 – Criação do Ministério da Cultura – MinC. Mas, a sigla MEC continua, porém, passa a se chamar Ministério da Educação.

-        1996  LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação e criação do FUNDEF - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério.

-        2006 – FUNDEF foi substituído pelo FUNDEB - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação.

Nos anos 2000 o MEC passa a ter as seguintes competências: política nacional de educação; educação infantil; educação em geral, compreendendo ensino fundamental, ensino médio, ensino superior, ensino de jovens e adultos, educação profissional, educação especial e educação à distância, exceto ensino militar; avaliação, informação e pesquisa educacional; pesquisa e extensão universitária; e magistério (Portal MEC, disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=32681:apresentacao).

Chegamos a 2020 e assistimos ao desmonte do MEC, com mais sucateamento da educação em todos os níveis. Nem vou abordar os problemas referentes a nomeação de ministros, porque esse não é o foco do artigo.

Hoje, se consultarmos o site do MEC, na seção competências (disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/competencias), encontramos que:

O Ministério da Educação (MEC) é um órgão da administração federal direta e tem como área de competência os seguintes assuntos: a política nacional de educação, da educação infantil, a educação em geral, compreendendo o ensino fundamental, o ensino médio, o ensino superior, a educação de jovens e adultos, a educação profissional, a educação especial e a educação à distância, a avaliação, informação e pesquisa educacional, a pesquisa e extensão universitária, o magistério e a assistência financeira a famílias carentes para a escolarização de seus filhos ou dependentes. Para o cumprimento dessas competências, o MEC poderá estabelecer parcerias com instituições civis e militares que apresentam experiências exitosas em educação.

 Observem que, embora as definições de atribuições do MEC nos anos 2000 sejam muito parecidas com a de 2020, temos algumas diferenças.

Começarei por uma que me chamou bastante atenção, devido a minha experiência profissional: “a assistência financeira a famílias carentes para a escolarização de seus filhos ou dependentes”.

Primeiro vamos desconstruir esse termo “carente”, porque está ligado a concepções que baseiam a doutrina da situação irregular que, por sua vez, tem raízes no contexto da cultura da compaixão e repressão, de fins do século XIX na América do Norte e início do século XX na Europa.

Essa concepção, influenciou o famigerado Código de Menores, que expressava a doutrina da situação irregular, diretamente ligada à cultura da repressão no trato da situação do “menor” (conforme denominação à época).

Crianças em situação de vulnerabilidade, em situação de pobreza, não são “menores carentes” que precisem de assistencialismo e caridade.

Crianças e adolescentes são sujeitos de direitos fundamentais e como tal devem ser vistos.

Ao colocar o termo “carentes” o estado se desvencilha de seu dever de promover os direitos fundamentais da criança e do adolescente, dentre os quais à Educação, para se transformar em um estado-provedor e assistencialista que visa atuar em prol do “pobre carenciado” que precisa de caridade.

NÃO! Absolutamente não!

Eles precisam que seus direitos fundamentais sejam garantidos!

Como se não bastasse o MEC distorcer a questão de sujeitos de direitos para carentes”, o órgão vai além e prevê “assistência financeira a famílias carentes para a escolarização de seus filhos ou dependentes”.

A LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação, estabelece as regras para a educação nacional. Nela, não encontramos a previsão de “assistência financeira a famílias carentes”.

Aliás, no artigo 71 da LDB, encontramos que:

Não constituirão despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino aquelas realizadas com:

                                                                              ...

IV - programas suplementares de alimentação, assistência médico-odontológica, farmacêutica e psicológica, e outras formas de assistência social[1]; (grifo meu).

Esse tipo de assistência pretendido pelo MEC é papel da política de Assistência Social que tem, entre seus serviços e benefícios, programas de transferência de renda, que são destinados a famílias em situação de vulnerabilidade e que necessitem de tal auxílio.

A Política Nacional da Assistência Social – PNAS é muito bem definida, assim como o SUAS – Sistema Único da Assistência Social, que tem a finalidade de garantir proteção social aos cidadãos.

Vejam a diferença: “proteção social aos cidadãos” e não caridade para crianças e famílias “carentes”.

As políticas públicas, para serem efetivas, precisam dialogar entres as diversas áreas, ou seja, precisamos que sejam executadas de modo intersetorial.

Assim, não compete à política de Educação promover assistência financeira a famílias que necessitem. A Educação deve encaminhar os casos com esse perfil à Assistência Social, responsável por programas de proteção social à família e, dessa forma, estará atuando intersetorialmente. Importante ressaltar que a intersetorialidade não acontece apenas por encaminhamentos de uma área a outra, mas, por uma ação integrada entre as diferentes políticas públicas.

Portanto, além de essa “assistência” pretendida pelo MEC estar baseada em visão assistencialista, e mais de acordo com a doutrina da situação irregular, portanto, distante dos preceitos ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente e da própria LDB, também representa uma invasão de competências.

Ao MEC cabe regular tudo o que se refere à Educação no geral. Assistência Social não está atrelada ao MEC, não é competência desse Ministério.

Outra diferença entre o que foi estabelecido nos anos 2000 e as atribuições encontradas no site do MEC na data de hoje (01 de julho de 2020), refere-se ao aspecto militar.

Lá atrás, temos a anotação “exceto ensino militar”. Em 2020 encontramos a expressão "para o cumprimento dessas competências, o MEC poderá estabelecer parcerias com instituições civis e militares que apresentam experiências exitosas em educação”.

Esse trecho é exatamente o que dá brecha para uma das mais novas excrecências desse desgoverno: as escolas cívico-militares, sobre as quais falarei mais adiante.

Não só por isso, mas, o que vemos desde que esse grupo chegou ao poder, é o desmonte deliberada e sistematicamente da Educação brasileira.

 Vicente Vilardaga, em “A escalada da deseducação” (artigo para uma revista, disponível em: https://istoe.com.br/a-escalada-da-deseducacao/) afirma que “com uma política de promoção do embrutecimento e da grosseria, demonstrações de desprezo pelos livros didáticos e paranoia com a doutrinação esquerdista, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro Abraham Weintraub afundam o futuro do ensino no Brasil”.

Com isso, e também por outros fatores, percebemos que há um desvio das questões realmente importantes para a Educação. Por exemplo, o Plano Nacional da Educação – PNE com as metas para promover melhorias, foi deixado de lado.

 Questões sem fundamento são trazidas à pauta como se fossem importantes e reais, quando são fantasiosas, com teses absurdas como a de doutrinação marxista, que seria promovida nas escolas por professores (supostamente) de esquerda.

   A escola sem partido é outro absurdo que propagam, como se a Educação fosse ligada diretamente a partidos políticos, como se esses fossem os elaboradores das concepções de Educação e a mesma fosse político-partidária, mais especificamente de esquerda.

   Esse desgoverno nos trouxe a tese de que professores são um bando de esquerdistas, marxistas e que visam formar guerrilheiros (antes fossem...). Pior: muitos de seus seguidores reproduzem tal discurso, sem qualquer reflexão a respeito.

  Óbvio que a Educação não é e nem deve ser neutra. Há concepções de educação, visão de mundo, visão de homem que influenciam a prática educativa. Porém, daí a dizer que professores são doutrinadores marxistas e que deve-se-lhes impor mordaças, não é apenas fantasioso, é delirante!

  Além dessas teses, outra aberração trazida por este desgoverno e, infelizmente acatada por alguns Estados, é a ideia de escolas cívico-militares. É curioso, e contraditório, que questionem a Educação atribuindo o adjetivo de “doutrinação marxista”, mas almejem que todas as escolas sejam cívico-militares. Ou seja, que todas as escolas se tornem propagadoras da ideologia militar. Sim, militar e não cívico-militar, pois esse cívico está aí apenas para tentar amenizar o título e esconder os reais objetivos.

   Que existam escolas militares, assim como religiosas, não é problema, desde que sejam opções. Todos temos o direito de escolher que nossos filhos estudem em escolas de acordo com nossas crenças, valores, convicções.

   Quem quiser colocar seus filhos em escolas militares, que coloque. O mesmo em relação a escolas de ligadas a religiões. Mas, repito, para ressaltar: como opção e não por falta de escolha.

 O Estado não pode determinar que todas as escolas sejam cívico-militares! Ao pretender isso e incitar Estados a aderirem, o Estado brasileiro incorre em violação do direito fundamental à Educação, pois está deixando crianças e adolescentes sem opções para estudar.

 Diversas escolas estão passando por essa mudança, mesmo sob protestos da comunidade local, a principal interessada, e suas crianças e adolescentes estão sendo obrigados a estudar nessas instituições.

 Estão tirando a liberdade de escolha. Porém, mais do que isso: o Estado está violando os direitos fundamentais da criança e do adolescente.

 Vejamos quais são esses direitos expressos no ECA e, em minha opinião, como estão sendo violados pelas decisões e medidas tomadas pelo MEC.

 Direito à liberdade - artigo 16. As violações ocorrem nos aspectos liberdade de opinião e expressão e direito de participar da vida política, haja vista que foi decidido pelo Estado a transformação de suas unidades escolares em cívico-militares, sem levar em conta a discordância dos estudantes e suas opiniões. Muitos estudantes são contrários a esse modelo e, no entanto, estão sendo obrigados a permanecerem nessas escolas.

 Direito ao respeito - artigo 17. As violações ocorrem no que se refere à inviolabilidade dos valores, ideias e crenças, haja vista que esse modelo de escola está ligado ao militarismo, cujos pressupostos divergem muito dos preceitos das escolas públicas no geral. Traz em si ideologia, regras e disciplina rígidas que servem a um determinado fim, que não o educacional, e nem relacionado a civis, de acordo com a legislação vigente.

 Direito à Educação – a partir do artigo 53.

 Transcrevo o artigo 53 na íntegra, com o objetivo de propor uma reflexão sobre o modelo de escola cívico-militar e se esses aspectos estão sendo respeitados.

Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II - direito de ser respeitado por seus educadores;

III - direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores;

IV - direito de organização e participação em entidades estudantis;

V - acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência.

V - acesso à escola pública e gratuita, próxima de sua residência, garantindo-se vagas no mesmo estabelecimento a irmãos que frequentem a mesma etapa ou ciclo de ensino da educação básica.

Parágrafo único. É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais.

Será que essas escolas respeitam os direitos de contestar critérios avaliativos, de organização e participação em entidades estudantis?

Respeitarão o direito dos pais ou responsáveis de ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais?

Enfim, sugiro que reflitam, pensem nas escolas que conhecem, pesquisem sobre ocorrências envolvendo esse modelo de escola e encontrarão ainda outros direitos fundamentais da criança e do adolescente violados pela implementação de escolas cívico-militares.



[1]  Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.


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